10 de outubro de 2009

A GATA DE OLHOS AZUIS

Postado por Agnaldo Vergara
Texto escrito em agosto 2003


Ontem, nove de dezembro, foi um domingo e, na cozinha da Casa de meu filho em Campinas, um pequeno grupo bate palmas, enquanto entoa, animadamente, o "Parabéns prá você! seguido de um pique-pique! Pique-pique; é hora!... É hora! É hora! Rá, tchim – bum! Cristina, Cristina, Cristina!!!”
As oito pessoas estão dispostas em círculo. A aniversariante, esposa do meu primeiro filho Mario, está, como todo aniversariante, meio sem jeito, enquanto recebe as homenagens e os abraços dos pais, Otsuka e Marina, da vizinha Maria Ivone com o filhinho Nícholas, do casal amigo Lilian e Lincoln, de mim, que sou a... sogra e do esposo dela, meu filho Mario.
Todos estávamos equidistantes do delicioso bolo que a Aparecida, tia da aniversariante confecciona com... hum! Chantilly e cerejas! E, nem bem acabados cantos e abraços, alguém empurra uma faca na mão da Cristina, sem, contudo, qualquer aparente... sugestão. “Inaugurado” o bolo e distribuídas as fatias, Maria Ivone chega-se perto de mim e diz que gostaria de saber a continuação da historia da Susi.
A Susi, no meu livro “Duas Moedas da Mesma Face” foi fogosa cadela que, dada a um fazendeiro, assim que pôde, fugiu, vindo nos visitar. À força, foi levada embora, de volta, porque amolava a vizinhança inteira, pondo em polvorosa toda a cachorrada do sexo masculino, quando estava no cio.
Depois, dando cria na fazenda, veio nos participar o fato, mas ninguém precisou levá- la; a responsabi1idade de mãe a fez tornar ao sítio.
Eu ia continuar a história, quando o Bud interrompeu- me:
- Pelo amor de Deus: você não vai falar de cachorro OUTRA VEZ. Não. Socorro! ah! Não!
- Bud, não se fala: Ah! Não!
- Ah! Não?!
- Não. Porque “ah não”: é um cacófato. Um vício de linguagem
- Um caco... o quê?
- Um cacófato. É a reunião de dois termos, formando um terceiro, com sentido
jocoso e até ridículo.
- Já sei. Guarda-roupa e um caca... caco o quê?
Cacófato, Bud. E guarda-roupa não é um cacófato. E uma palavra composta.
– Com o QUÊ?
- Composta. Você esta ficando surdo, Bud?
- Surdo? Hã... han, já sei agora onde é que eu havia guardado aquela borrachinha que escapou da ponta do lápis ontem.
- E você quer dizer que ficou com a borrachinha da ponta do lápis desde ontem... no... ouvido?
- É. Então. E depois, o que há, bolas, de tão estranho em se colocar borrachinha de lápis no ouvido...?
- Bem, voltemos guarda-roupa, agora que você voltou a ouvir.
- Por que? Surdo não pode entrar em guarda-roupa?
- E quem falou em entrar em guarda-roupa Bud? Pelo amor de Deus:
- Não chamar Seu santo nome em vão!
- Perdão! E quem vai entrar no guarda-roupa, Bud pelo amor de... mil demônios!. Vamos não falar de guarda- roupa, que não é um cacófato, e sim um substantivo composto.
- De qualquer forma, o seu guarda-roupa se não é um cacófato, um nome diferente bem que ele merece. Um tipo assim´ ”Deus-o-tenha”, por que - não discuto - ele é composto, sim, mas só por roupa de defunto... e defunto de um metro e oitenta – o seu tamanho!
Ignorando essas provocações, voltei a falar com a Ivone.
- Sabe, Maria Ivone, de muito bom grado eu lhe contarei a sequência da vida da Susi. Enquanto nos sentávamos em duas macias poltronas, mais uma vez tive que ignorar as provocações do Bud que insistia em brincar balançando um penduricalho entre nos duas.
E comecei a narração sobre Susi. Ou, pelo menos, sobre o que eu pretendia que fosse da Susi.
Lá nas brumas de tempos idos, até onde a memória alcança, imagens avançam e imagens se afastam, em cores e sóis umas, em nuvens e névoas outras...
- Que idade tinha você nessa época? Sussurrou-me uma voz como a do analista quando faz uma regressão.
- "Nove" respondi, ainda meio irritada com o Bud uma vez que ele insistia em brincar entre mim e a Maria Ivone.
Sem prestar-lhe mais atenção, continuei a minha narrativa:
Quatro anos eu devia ter então. Antes disso, tudo é, para a minha consciência, completo silêncio. Sem emoções. Sobre o conteúdo que o inconsciente guardou até aí, as impressões, as alegrias, os choros, as dores e os risos de neném, nada sei.
Minhas primeiras memórias remontam a um fundo de quintal, pedaços de lenha num canto e um muro alto demais ao lado direito.
Nesse quintal, um barracão grande, com cheiro de sombra, duas cordas amarradas aos caibros, uma tabua embaixo. Um balanço. As suaves mãos do meu pão Julio embalam-me. Canto “Ó jardineira, por que estás tão triste; mas o que foi que te aconteceu... ”
Da casa, propriamente, não me recordo. Apenas que na frente, na esquina, era uma padaria.
Certa manhã, um grande movimento naquela casa com quintal e balanço. A minha família estava de mudança.
O caminhão já lotado, notei como estava estranho o barracão sem o balanço. Haviam desmanchado um todo único que era meu antes. Um sentimento de perda se apodera de mim, quando ouvi o que me pareceu um lamentoso miado.
A minha gata branca!! Ela não está preparada para mudanças! Nem eu!!
Como são negligentes e estranhos os adultos. Como? Mudar tudo? Deixar o meu quintal, o cheiro de sombra do barracão, tudo familiar... agora, a minha gata branca mia triste!...
Dois olhos azuis acima dos pontudos bigodes, pelos macios e quentes, a minha gata branca é lânguida, sonolenta e preguiçosa.
Chamo-a. Ela não vem. Agarro-a, então e, juntas, no grande caminhão, olhamo-nos aflitas.
A viagem é curta. Apenas três quarteirões e pronto.
Que bom cheiro de pano novo há por aqui! É perto de uma fabrica de beneficiar algodão.
A gata está inquieta; agarra-se às minhas roupas, arranha e treme.
À noite, coloco-a numa caixa para dormir e foi essa a última vez que a vi. Sumiu a gata ingrata! Vasculho cômodo por cômodo. Nada. Vou até o pequeno quintal de cimento... nada! examino os buracos e o quintal do vizinho. Há um chorão lá. Que árvore triste. . .
Meu balanço, minha gata, meu quintal, meu cheiro de sombra... Acho que também estou triste...
De repente, alguém passou-me um prato com bolo e notei na Maria Ivone aquela expressão de perplexidade com que ficam as pessoas num restaurante, quando pedem filé com fritas e o garçom, depois de 40 minutos lhes traz brócolis com alho...
Meio sem jeito, ela perguntou-me:
- Mas... é... bem... é que você não falou nada da Susi!... bem eu não queria saber do seu problema com a gata branca...
- QUAL GATA BRANCA??!! : Inquerí, enquanto observava o Bud guardar, sorrateiramente, o seu pêndulo no bolso.
Outra vez ele havia interferido na minha mente!
Saí ao seu encalço, dispostíssima a desfechar-lhe nos fundilhos o meu garfo de sobremesa, mas... felizmente, minha nora barrou-me o caminho, porque estava dando umas voltinhas pela sala de jantar, experimentando a bicicleta caloi, cor de rosa, presente do marido.
Sorri para a aniversariante, enquanto Bud, tranquilo e pausadamente, dispunha-se a uma longa explanação à Ivone, sobre os mecanismos e consequências terríveis dos traumas de infância...
E a história da Susi ficou para outra vez!...

Um comentário:

Ivoninha disse...

Oi Daidy: Que dizer que um felino também marcou sua estória de vida? Pela sua descrição a gatinha deveria ser mesmo linda... Minha vizinha, D Orquidea possui um "clone" da sua, aho eu... Adorei, sua crônica! Parabéns, Daidy! Uma escritora nunca abandona sua pena, não é mesmo?