9 de outubro de 2009

O Viralata

Postado por Agnaldo Vergara
Texto escrito em novembro 2003

Não sei bem em qual programa foi, mas ouvi que falavam sobre cãezinhos.
Deixei o computador e fui à frente da telinha. De fato, era lindo de se ver...
Lindos exemplares caninos, escovados, bem nutridos, enfeitados com fitinhas e laçarotes.
Fiquei com inveja. Nunca fui tratada assim...
Sabe, devo-lhe contar uma estranheza. Todo brasileiro torce por um time de futebol. Vibra, comemora a vitória, sofre com a derrota... é quase uma filosofia de vida.
Eu tentei fazer isso, porque futebol, “neste País” é um grande prato cheio!
Mas... ao invés de escolher um time e ser fiel a ele... acabo torcendo por aquele que perde no placar! Se o perdedor começa a reagir e, no meio de campo dribla o adversário, passa a bola ao ponta esquerda – que faz um gol, depois outro. (Empata!) . E vem outro gol!! Agora o perdedor está vencendo. E eu não fico alegre. Passo a torcer... para o time contrário!
Vai ser burra assim nos quintos dos infernos!
Ah! Não, não! não gostaria de sofrer com todo aquele calor. Calor é bom em fornos. Principalmente nas... cozinhas das Prefeituras. E depois, juro, juro que, desde o dia em que nasci – ou antes! – já havia decidido a ser feliz.
Como disse, é uma estranheza.
Voltemos aos lindos cãezinhos elegantes e acarinhados. Esse fino trato fez-me relembrar de uma crônica do meu livro: Duas Moedas da Mesma Face, que leva o título de:
O Viralata
(Vai resumido... espaço de jornal não é para brincadeira)
Aparenta ter um focinho de buldogue cruzado com fox; as orelhas, nem pontudas, nem triangulares, muito largas para seu peito estreito, muito estreitas para a cintura larga; as pernas, muito curtas para um doberman elegante e muito longas para um bassé delicado. Os pelos, nem claros nem escuros. Desbotados, ásperos e sujo; não se pode dizer que sejam longos, nem curtos. As patas, grosseiras demais para um poodle e insignificantes demais para um fila brasileiro. Elas lembram os pés do Jeca Tatu.
Deitado, ou melhor, esborrachado no fundo de um beco parecido aos que Honoré de Balsac descreve em sua Comédia Humana, ruidosamente ronca, quando um raio de sol lhe aquece o focinho, tradicionalmente gelado. Neste momento, enrugada mão lhe afaga a cabeçorra. Nosso personagem acorda, incomodado com tanta... comodidade! desfranze a enrugada pelanca da testa e abana, veementemente, a cauda. É que ali está seu amigo, um preto velho desdentado que acorda também. O cão lhe devolve a carícia com barulhenta lambida no rosto muito rude.
E... como todas as manhãs, põem-se ambos a caminho. O preto velho e desdentado, à frente; o estapafúrdio cão, atrás. Cada um vai pensando seus pensamentos. O velho preto: “pobre cão... deve estar faminto...” O estapafúrdio cão: “pobre velho quase surdo, de roupa rasgada... quantos buracos há nos velhos sapatos...sempre à frente do meu focinho... desdentado... logo logo... nada mais poderá roer... tem os ombros curvados.. acho que precisaria ser socorrido por um canil de velhos...”
E chegam ao destino. É um bairro de classe A, onde farto é o lixo em que fuçam. Cada um vai para um lado, que é para aproveitar tudinho.
Ao findar a tarefa, longe um do outro, mas ligados por um santo cordel de solidariedade... voltam ao beco do Honoré de Balsac.
Um afago da mão enrugada na cabeçorra, uma lambida barulhenta de amor na face sofrida... é o “boa noite”. Noite fria. Adormecem.
Ruídos estranhos e diferentes acordam esse cão – de estranho focinho , cruza de buldogue, com fox. Levanta-se, dá uma violenta sacudida em toda a estapafúrdia elegância. Franze as pelancas da testa... e lhe chega uma dor profunda no olhar... como só os cães a sabem exprimir...!
Seu grande amigo preto velho é levado para um carro grande, longo e branco, por homens vestidos de limpo... ele quis entrar também e seguir aquelas pernas rígidas que terminavam em dois seus conhecidos sapatos velhos e... furados. Foi impedido.
O cão, adolorado, sem saber se avança ou se recua, se late se uiva ou se morde... apenas consegue, acelerado o coração, emitir um sentimento:
-Adeus... meu velho amigo viralata...!!
É por esse motivo que não gosto de futebol. Bolas! E não só bolas. “Au... au, au...! também...

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